"Impuros": um retrato imersivo do isolamento compulsório

Em entrevista concedida à NHR Brasil, o médico e autor Lino Giavarotti revela motivações por trás do romance e reflete sobre os desafios e angústias de uma época marcada pelo isolamento compulsório no País.

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Prepare-se para uma jornada pelos meandros de uma história muitas vezes esquecida. Em uma entrevista exclusiva, mergulhamos no mundo do médico e escritor Lino Giavarotti, autor do livro "Impuros", publicado pela editora Patuá em agosto de 2023. O romance trata sobre o período do isolamento compulsório de pessoas acometidas pela hanseníase no Brasil, que ocorreu entre 1926 a 1962. 

Na trama, acompanhamos a narrativa de um homem impactado pela hanseníase ainda na juventude e que se viu forçado a ser internado em um Hospital Colônia. Por meio de sua perspectiva, acompanhamos como o isolamento afetou a vida do personagem principal e a de outros indivíduos que tiveram que se adaptar a uma vida contida – longe de suas famílias, trabalhos e sonhos – e, apesar disso, seguir com suas obrigações na colônia.

Lino Giavarotti, autor do livro, é médico formado pela Universidade de Medicina da Unicamp de São Paulo, e se dedica à escrita criativa desde 2016. A NHR Brasil teve a oportunidade de entrevistá-lo e contar com suas reflexões acerca da temática do livro e de seu processo criativo. 

Confira na íntegra a entrevista: 

NHR Brasil: O que te motivou a escrever Impuros? 

Lino Giavarotti: Existe uma experiência pessoal bem marcante. Quando criança, havia um segredo familiar. Existia uma tia minha, que está viva até hoje, que sumiu da família. Não se dava informações sobre ela e eu desconhecia totalmente onde ela tinha ido.

Os pais, os avós, os tios não falavam nada. Era uma tia por parte de pai. E isso ficou num segredo, uma mudez absurda. Essa tia um dia voltou para a família, e nunca mais se falou da história. Quando eu fui para a faculdade de medicina e já tinha algum conhecimento, minha mãe me disse o porquê minha tia tinha ficado desaparecida. Ela me explicou que minha tia havia ficado internada num asilo: um asilo colônia.

Na faculdade de medicina, um professor de dermatologia fez alguns testes com os alunos do primeiro ano – era o teste da lepromina, do Mitsuda – e eu era muito reagente. Quer dizer, eu tinha tido um contato muito próximo da doença, com as pessoas que tinham hanseníase.

Na época, isso me deixou alarmado, porque eu sabia que minha tia teve hanseníase e eu poderia ter adquirido a doença também. Isso ficou na minha cabeça por muitos anos e eu fui digerindo a informação aos poucos. Até que resolvi escrever a história dela, quando comecei a fazer oficinas de escrita. Ela havia ficado internada e eu não tinha conhecimento de nada do que ela passou.

Então, por orientação do professor de escrita criativa, eu escrevi em primeira pessoa e acabei sendo internado também, como se tivesse acontecido comigo, como se eu tivesse adquirido a doença naquela época. E aí veio uma parte autobiográfica ficcional. Boa parte do livro é totalmente ficcional, porque tudo o que aconteceu dentro do Asilo Colônia é ficcional.

Sou um profissional da ciência, sou um médico, então não poderia escrever sobre hanseníase sem estudar hanseníase, eu não poderia escrever sobre isolamento sem estudar arquitetura de isolamento. Por isso, os elementos citados no livro têm base do que de fato aconteceu historicamente e cientificamente. Dessa forma, pude desenvolver a ficção, baseado numa realidade. Portanto, "Impuros" não se trata de uma ficção solta do que imaginei de um antigo leprosário. 

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NHR Brasil: Por que você avalia ser importante relembrar o período do isolamento compulsório? 

Lino Giavarotti: Esse isolamento compulsório era uma das coisas mais cruéis que já ocorreram na política de saúde pública do Brasil, uma vez que era internado qualquer paciente que tivesse sinais de hanseníase. Você não sabia se ele tinha potencial de contágio ou não, que tipo de lesão ele tinha. Mas se ele tivesse uma pequena mancha anestesiada nas costas, na coxa, ele já era taxado. Se o médico desse o diagnóstico, ele era internado.

Ao contrário de outras doenças, em que o isolamento é apenas uma recomendação temporária, os pacientes afetados pela hanseníase eram internados sem perspectiva de saída. Isso ocorria porque, naquela época, não existia cura para a doença. Então era um verdadeiro aprisionamento. O que se fez naquela época foi criar situações desses asilos em colônias muito parecidas com uma pequena cidade do interior. O governo oferecia toda uma arquitetura de isolamento elas viviam como se estivessem vivendo "do lado de fora". Nesse sentido, você tinha espaços como teatro, cinema, campo de futebol, gráfica e marcenaria dentro das colônias.

Os pacientes que podiam trabalhar depois dos 18 anos assumiam algum tipo de profissão que eles já exerciam fora ou tinham algum conhecimento e aprendiam lá mesmo. As mulheres, por exemplo, iam muito para a lavanderia, para a cozinha. Além disso, as pessoas perdiam contato com familiares e amigos. Existiam algumas visitas, mas devido ao estigma, muitos familiares e amigos nem apareciam por lá.

Devido ao isolamento, eles sofriam muito pela perda de liberdade e pela desinformação. Também dissolviam as famílias e as amizades, restringiam muito o sexo, por medo de reprodução dentro do asilo. Não tinham esperança. Não tinham tratamento. Eram pessoas totalmente desesperançadas. 

Mesmo com a mudança da nomenclatura da doença para hanseníase, o estigma persiste até os dias atuais. Acredito que o livro fica atual na medida em que a obra lida com o que hoje ainda é muito evidente sobre a temática:o racismo, a discriminação, as diferenças sociais significativas. A obra chama atenção para esse tipo de abordagem.

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NHR Brasil: É evidente que a narração da história permite que o leitor se sinta na pele do personagem. Você teve a intenção de escrever esse romance mais imersivo? E se sim, qual foi o seu objetivo com essa característica?

Lino Giavarotti: Foi uma decisão que a gente tomou em meio ao livro. Eu estava escrevendo sobre a minha tia, o que eu fazia, então, em terceira pessoa. Mas, por sugestão do professor dessa oficina de escrita, eu puxei para a primeira pessoa e vi que a obra se tornaria mais interessante. Você leva o leitor a "vestir a carapuça", a sentir tudo o que está acontecendo lá dentro. E eu precisava também ter a sensação ou a experiência de viver aquilo para poder demonstrar. Preferi dizer “eu senti isso”. Inclusive, algumas pessoas me pergintam como se eu estive internado mesmo. Porque chamou muito para o autor a experiência.

Realmente, eu nunca fui internado. Quase tudo lá é ficcional mesmo. Só a parte inicial da formação da minha família, da vinda da minha família do interior para São Paulo é real. Boa parte das coisas que estão nesse trecho aconteceram mesmo. 

NHR Brasil: Você pretende escrever mais obras sobre o tema do isolamento compulsório e sobre a hanseníase?

Lino Giavarotti: Eu ainda não pensei em continuar escrevendo sobre esse tema. E eu vou te dizer o porquê. Outro dia me perguntaram: “Você viveu esse livro? Ele é um livro um pouco pesado”. Algumas pessoas diziam: “Nossa, eu não conseguia parar de ler, mas era pesado. E às vezes eu parava, porque estava me faltando ar”.

O livro foi uma catarse. Foi quando eu consegui me libertar dessa coisa do segredo familiar, mergulhei no que era, fui ler artigos científicos e teses para poder criar em mim uma limpeza desse mal-estar familiar que se arrastava por muitos anos. Eu tenho agora 75 anos. Então eu consegui me livrar disso nos últimos 7 anos. Eu não sei se continuarei escrevendo sobre hanseníase. Mas pode ser, pode até ser. Hoje não há mais nenhum bloqueio sobre isso. 

Saiba mais sobre a obra no site da Editora Patuá: www.editorapatua.com.br 

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