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A seguinte entrevista faz parte da campanha da ILEP em alusão ao Dia Mundial Contra a Hanseníase, celebrado no último domingo de janeiro. Com imagens da Federação ILEP.  

Alice Cruz é a Relatora Especial da ONU sobre eliminação da discriminação contra pessoas afetadas pela hanseníase e seus familiares. Ela foi indicada pelo Conselho de Direitos Humanos para este mandato no dia 1º de novembro de 2017. Antes disso, Alice trabalhou como professora na Escola de Direito da Universidade Andina Simón Bolívar, no Equador.

Ela trabalhou com a organização brasileira não-lucrativa Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) e serviu como membro do Conselho da Associação Internacional de Hanseníase (2014-2016). Desde o início da carreira, Alice pesquisou e escreveu sobre o tema da eliminação da hanseníase e sobre o estigma associado à doença.

Como Relatora Especial, o trabalho de Alice é defender a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os artigos sobre os quais ela fala especificamente incluem: 

  • Artigo 21: Todo ser humano tem o direito de fazer parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.
  • Artigo 25: Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e à sua família, saúde e bem-estar, incluindo alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
  • Artigo 12: Ninguém será sujeito à interferência arbitrária em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.
  • Artigo 5: Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

 

Agora que você está na função de Relatora Especial há alguns anos, você está começando a ver tendências surgirem?

Bem, é um pouco cedo para ver tendências surgindo. Durante a preparação do relatório 2019, com as consultas que fiz e as conversas que tive com diferentes partes interessadas, vi que as pessoas começaram a se questionar sobre a importância de prestar mais atenção às diferenças de gênero relacionadas à discriminação. Eu considero que este é um processo em construção. Quando comecei a preparar o relatório, eu percebi que mesmo que as pessoas falem sobre discriminação de gênero, na prática não há muitas estratégias para lidar com o fato de que as mulheres sofrem mais discriminação que os homens. É um pouco semelhante a conversas sobre direitos humanos. Muitas vezes, estas palavras são usadas como um símbolo sem uma real sensibilidade, abordagem ou estratégia. Então foi boa a conversa que se iniciou com a preparação para o relatório e o diálogo interativo no Conselho de Direitos Humanos.

Eu acho que a recepção do relatório de 2019 no Conselho de Direitos Humanos foi muito boa, espero que a mensagem seja bem transmitida. Eu tive a esperança de que o relatório pudesse ser levado a sério, especialmente pela comunidade da hanseníase. Precisamos desenvolver estratégias substanciais para ter uma abordagem de direitos humanos aceita em torno da hanseníase. Então isto é o que espero ver.

 

Você acha que tem sido difícil levar a comunidade da hanseníase a olhar pela lente dos direitos humanos?

Nós precisamos ir além de usar direitos humanos como um símbolo. Neste sentido, sim, pois é muito fácil falar sobre o que você não sabe. Eu sinto que a comunidade da hanseníase ainda não está preparada para o engajamento com os direitos humanos. As duas principais tradições nesta comunidade têm sido a caridade e a abordagem médica. Direitos humanos é realmente uma abordagem diferente. E eu acho que, às vezes, os direitos humanos são confundidos com a abordagem da caridade. Isto não ajuda muito porque a abordagem de direitos humanos exige o reconhecimento de que a pessoa acometida pela hanseníase precisa ser o centro de qualquer processo. Precisamos realmente fazer o possível para garantir que as pessoas acometidas usufruam da cidadania em igualdade com outras pessoas. Os direitos humanos aparecem no discurso, mas, no meu ponto de vista, eles não estão incorporados nas estratégias e abordagens, nos métodos de trabalho. Eu acho que ainda temos um caminho longo a percorrer para ter uma abordagem robusta de direitos humanos para a hanseníase.

 

Como esta abordagem seria para você?

O passo mais importante seria realmente reconhecer as pessoas acometidas pela hanseníase como sujeitos de direitos. Para, neste sentido, trazê-los para a conversa. Eu ainda não vejo isto. Nós temos como modelo a UNAIDS, onde há pessoas acometidas no conselho, e elas trazem diversas estratégias em diferentes níveis para combater a discriminação. Isto, por exemplo, seria algo muito importante para a hanseníase.  

Mais uma vez, eu acho que o problema é que nós não sabemos o suficiente sobre as pessoas acometidas pela hanseníase, seu perfil e suas necessidades. Elas têm necessidades muito básicas que precisam ser alcançadas. Algumas organizações nos territórios estão fazendo isto muito bem, mas esta ainda não é uma política de Estado. Claro, precisamos enfrentar o problema da transmissão e do cuidado médico. Mas seria importante envolver outros setores dos governos, como trabalho, educação e segurança social, na implementação de uma abordagem de direitos humanos para a hanseníase.

 

Por que você acredita que a redução do estigma e da discriminação é importante para interromper a transmissão e prevenir deficiências?

Nós precisamos parar de olhar para a discriminação e o estigma apenas como um determinante social da transmissão e das incapacidades físicas. É importante reconhecer que estigma e discriminação são enormes barreiras para o bem-estar, para a saúde. Mas reduzir estigma e discriminação deveria ser um objetivo em si. Para realmente se ter uma abordagem bem robusta de direitos humanos para a hanseníase, precisamos olhar para a meta de zero estigma e discriminação como algo que precisamos atingir mesmo que não haja transmissão, mesmo que não haja incapacidades e deficiências. Entender que a inclusão verdadeira não pode ser um meio para chegar a outro fim, deve ser um fim por si só.

Mas voltando à pergunta, é claro que a discriminação é uma grande barreira em diversas formas. Precisamos continuar a olhar o estigma como algo que faz com que as pessoas escondam a doença, evitem os serviços de saúde – é claro que isso acontece. Mas a discriminação é também o que faz com que as pessoas tenham pouquíssimos recursos para às vezes usar o transporte público para ir às unidades de saúde. Existe uma dimensão econômica relacionada à discriminação que também precisa ser levada em consideração. Quanto às pessoas acometidas pela hanseníase, isto tem um impacto muito grande no acesso delas à saúde e à prevenção.

Eu acho que precisamos falar sobre questões de estigmatização, como crenças tradicionais nocivas e práticas que, como você pode ver no meu relatório, ainda estão bem vivas. Precisamos fazer algo sobre isso em termos de uma conscientização efetiva. Mas também precisamos olhar para as dimensões sociais e econômicas que mantêm as pessoas acometidas pela hanseníase excluídas e com acesso bastante limitado aos serviços do Estado, como saúde e educação. Isto também é discriminação.

Eu acho que outra dimensão também importante é que pessoas acometidas pela hanseníase têm acesso limitado à justiça, e geralmente o acesso à justiça é muito importante para garantir que as pessoas gozem de cidadania plena.

Alice Cruz 1

 

Que pequenas mudanças você espera ver antes do seu próximo relatório?

Eu acho que ainda estamos na fase de conscientização, então não posso esperar mais do que isso a esta altura. Tenho trabalhado muito para conscientizar sobre a hanseníase no Conselho de Direitos Humanos. Eu espero que as mudanças que estou fazendo no Conselho de Direitos Humanos possam ter algum impacto nos governos dos países. Eu também espero que a própria comunidade da hanseníase se envolva mais e mais com os direitos humanos.

 

Você sente que houve uma mudança no Conselho de Direitos Humanos?

Sim, claro. Quando eu comecei, a hanseníase era vista apenas como uma questão de saúde que não tinha lugar no Conselho de Direitos Humanos, que seria apenas abordada pela Organização Mundial da Saúde. Houve uma oposição forte à criação deste mandato por causa disso. A maioria dos Estados achou que este mandato estava se sobrepondo a outros, como os de saúde e deficiências, e que não fazia sentido algum gastar recursos em um mandato dedicado a isso.

Agora, esta não é a visão da maioria. Eu fiquei muito feliz com o retorno que recebi dos Estados-Membros e mais feliz ainda ao ver que os Estados fizeram uma declaração muito positiva sobre a importância de desenvolver uma abordagem de direitos humanos para a hanseníase. Então sim, no Conselho de Direitos Humanos eu posso dizer que estou vendo uma mudança muito positiva.

 

O que você gostaria que as ONGs que trabalham no mundo da hanseníase fizessem?

Bom, eu gostaria de vê-las mudando seus relacionamentos, não apenas com pessoas acometidas pela hanseníase, mas também com organizações existentes de pessoas acometidas. Não existem muitas, mas existem algumas. O foco importante que eu gostaria de ver é um relacionamento de trabalho entre os membros da ILEP (Federação Internacional de Associações de Combate à Hanseníase) e estas organizações. Eu gostaria de ver os membros da ILEP tratando estas organizações como parceiros prioritários. Eu ainda não vejo isso. Mais uma vez, eu gostaria que as pessoas acometidas pela hanseníase participassem de uma mudança estrutural rumo à inclusão e ao bem-estar. Do meu ponto de vista, consultá-los é importante. Mas, para mim, a consulta não é o mesmo que participação.

 

Quando você assumiu este papel, qual era a grande mudança, o grande acontecimento que você realmente gostaria de ver acontecer?

Bem, é importante ver mudanças a nível legal, claro. É importante ver todas estas leis discriminatórias sendo eliminadas. Mas mais do que isso, seria ver os países criando medidas afirmativas. Eu ficaria muito feliz em ver isto. Podem ser temporárias, não precisam durar para sempre, mas seria importante tentar recuperar a desvantagem histórica e sistêmica das pessoas acometidas com medidas que podem garantir oportunidades iguais, assim como resultados iguais. Então, eu gostaria de ver a criação de medidas afirmativas em países importantes para a hanseníase.

Mas eu gostaria principalmente de ver alguma mudança na forma que as pessoas olham para a hanseníase. Precisamos mudar a narrativa sobre a hanseníase. Precisamos ver pessoas acometidas sendo reconhecidas, respeitas e incluídas como em qualquer outra doença. Eu sei muito bem que não verei isto acontecer enquanto eu estou neste cargo.  

 

O que podemos fazer sobre o preconceito individual?

Uma coisa que sabemos que funciona muito bem é a participação de pessoas acometidas a nível comunitário e nacional, pois a única forma de mudar o preconceito individual é interagir com pessoas que são discriminadas. Quando você conhece as pessoas que você discrimina e vê que elas são mais parecidas com você do que diferentes, o seu preconceito começa a desmoronar. Então nós precisamos trazer as pessoas acometidas pela hanseníase para o centro da sociedade e em todos os níveis da sociedade. É por isso que a participação é tão importante nos serviços de saúde, no nível comunitário, em campanhas de conscientização e processos de tomada de decisão no nível nacional.

 

Sobre qual desenvolvimento ou progresso você está mais animada?

Esta é uma pergunta difícil de responder porque agora eu estou muito mais focada nas diferentes barreiras ao desenvolvimento ou progresso. Como superamos estas barreiras? Eu diria que o desenvolvimento que me deixa mais animada para ver é o surgimento de uma nova liderança de pessoas acometidas pela hanseníase em nível global. Eu vejo uma nova geração vindo com uma consciência muito forte de seus direitos, e estou colocando todas as minhas esperanças nela. 

 

*Conversa editada para publicação. Confira o material em inglês no site da ILEP*